Ao longo da vida, vamos construindo os nossos saberes através da experimentação e da partilha.
Nesta perspectiva, partilhamos a visão de Sebastião Barata, em "Livrónicos" sobre o livro da Prémio Nobel da Literatura, Olga Tokaurczuk, intitulado "Conduz o teu arado sobre os ossos dos mortos".
Se à partida o título nos conduz a pensar que só construímos o futuro com a ajuda do passado ou, em alternativa, a analisar o despudor do homem face à sua vivência, vejamos então o que os "Livrónicos" têm para partilhar connosco sobre este livro de leitura autónoma proposta aos alunos do ensino secundário:
Comentário ao livro “CONDUZ O TEU ARADO SOBRE OS OSSOS DOS MORTOS” de Olga Tokarczuk
Olga Tokaurczuk é uma escritora polaca nascida no tempo em que a Polónia fazia parte do bloco de Leste e era governada por um regime comunista. Viveu o tempo das lutas pela independência e a implantação da democracia, quando ela estudava psicologia na Universidade e foi voluntária para ajudar as vítimas dos soldados soviéticos que reprimiam as manifestações populares. Viveu depois também a queda da URSS e a destruição do muro de Berlim. Mas o mais importante para falar deste livro foi a sua infância passada no campo, pois os seus pais eram professores numa zona rural e também passava as férias no campo com os avós. Era muito observadora e divertia-se a passear pelos campos, a tomar banho nos rios, a observar os camponeses, os animais selvagens e as plantas. Também gostava de ouvir os seus avós contavam-lhe histórias do passado da região e ver velhas fotografias de família.
Mais tarde, depois de já ser uma escritora conhecida, Olga Tokarczuk adquiriu uma casa no vale polaco Kłodzko, onde vive uma parte do ano cercada pela natureza e tem oportunidade de aprofundar o seu interesse pela ecologia. Este local inspirou a autora para cenário deste e de outros dos seus livros.
“Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos” tem como personagem principal uma excêntrica idosa que foi engenheira de pontes e professora. Está agora aposentada e reside numa pequena aldeia no meio do campo. É um dos três únicos residentes permanentes, porque as restantes moradias pertencem a pessoas que só ali passam as férias do verão. Por isso, ela encarrega-se de ir vigiando diversas casas a pedido dos respetivos donos. Uma dessas casas pertence a uma escritora que ali passa sempre o verão, o que me pareceu uma evidente alusão de Olga a si própria.
Essa moradora não é muito conversadora e prefere os passeios pelo campo e a companhia dos animais, à dos outros dois moradores permanentes, ambos também bastante peculiares. Ocupa uma parte do seu tempo a traduzir poemas de William Blake e a fazer estudos astrológicos, a sua grande paixão. Em pleno inverno, com os campos, as ruas e as casas cobertos de neve, um dos seus dois vizinhos aparece morto em casa com sinais de ter sido assassinado com grande violência. Era uma pessoa muito estranha que não tinha respeito pela natureza, nem pelos animais. Usava armadilhas onde os animais eram apanhados e morriam com muito sofrimento. Quando foi encontrado morto, tinha acabado de caçar e desmembrar uma corça e um grupo de corças foi visto a rondar a sua casa.
Depois desta morte, começaram a aparecer mortos os membros do Clube de Caça da região, todos eles em condições horrorosas, como por exemplo apanhados nas armadilhas daquele que foi o primeiro morto e continuavam espalhadas pelo campo. A polícia iniciou uma investigação do estranho caso, mas a idosa excêntrica fez também a sua investigação paralela, baseando-se nos seus conhecimentos da região e procurando explicações baseadas nos mapas astrológicos de cada um dos mortos. Quase sempre é ela a primeira a encontrar os cadáveres.
Como amante da natureza e dos direitos dos animais, esta idosa era inimiga dos caçadores e ficava secretamente contente com as mortes que iam ocorrendo. Será que ela tinha alguma coisa a ver com estes acontecimentos? Seria uma colaboradora ou uma sabotadora das investigações da polícia? Uma coisa é certa: para ela os caçadores eram uns criminosos, enquanto para a polícia eram cidadãos responsáveis e a caça era uma atividade útil para regular o equilíbrio entre as espécies que habitavam aquele vale.
Como certamente já repararam, Olga Tokarczuk questiona neste romance, de uma forma mordaz, por vezes mesmo horrorosa, as posições da sociedade para com os direitos dos animais e a conservação da natureza. Mostra como os conceitos defendidos por uma grande parte das pessoas está longe de ser ecológica e defender a casa comum que é a Terra. Quem serão os loucos? Quem merece castigo? Aqueles que, como aquela velha que todos consideravam já regular mal da cabeça, se recusam a comer carne, protegem as florestas e os direitos dos animais, ou, pelo contrário, os que querem manter os usos e tradições que vão levar fatalmente ao desequilíbrio ecológico e ao aquecimento global?
Este livro trata um tema muito atual e que a autora desenvolve de uma forma muito agradável de seguir, com aspetos de romance policial, mas também de thriller, por vezes mesmo horroroso, podendo certas passagens ser repugnantes para alguns leitores. Mas é um livro deliberadamente escrito para abanar as consciências, que todos deviam ler e saber interpretar.
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